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domingo, 28 de julho de 2013

O Caminho Ascendente de Flores

  Seguia. Eu estava bem comigo mesmo. Acho que era efeito de minhas incontáveis noites mal dormidas. Não sei mais. Eu só sabia que estava bem. O lugar... ele não importa. É personagem secundário nessa trama. Nunca me importei muito com isso mesmo. Só sei que estava bem cheiroso. Eu sentia um perfume tão singular que não se podia comparar com coisas que eu conheço. Um perfume que humano nenhum consegue comparar com coisas que conhece. 
  Algo que importa, é que eu voava. Absurdamente, eu via o chão passando sob os meus pés sem encostá-los no chão. Acho que poucos dos humanos já tiveram a sensação de voar e os que tiveram não conseguem imaginar a diferença de voar em modelos aerodinâmicos com a de voar do jeito que eu estava. Eu praticamente sentia asas saindo das minhas costas e trabalhando num alto metabolismo para me fazer levitar. 
  Qual não foi o meu espanto ao ver um enxame de abelhas ao meu redor. Eram tantas, e, por alguma razão, eu conseguia distinguir cada uma, cada ser. 
  E algo mais de estranho... o que era? Eu tentava me lembrar e não conseguia. Veio então a ideia forte na minha cabeça: Eram todos machos, como eu!
  Foi então que finalmente percebi que de alguma forma eu estava transfigurado em abelha. Eu era abelha, uma abelha operário a coletar o pólen das belas flores. Então era esse o cheiro que eu senti naquele momento.. cheiro do pólen! Ah...! Como é bom...
  Não consegui mais pensar. Um hibisco maravilhosamente grande estava à minha frente e eu fui até o estame. O pólen... Ah! É algo indescritível.
  Se meu relato vai ficar menos crível eu não sei, mas, de alguma forma, puxei assunto com uma abelha operária ao meu lado. Posso dizer que as abelhas se comunicam de alguma forma, apesar de mesmo eu tendo sido abelha, não conseguir dizer exatamente qual.
  Ele não me disse seu nome, as coisas entre as abelhas não funcionam bem assim. Mas comentou sobre o maior mito das abelhas: O Caminho ascendente de Flores. Disse que era uma infinidade tão grande de rosas que jamais precisaríamos trabalhar novamente.
  Depois de dias, um rumor começou a correr pela colmeia: Alguém vira o Caminho.
  Todos nos alvoroçamos. Ao querer saber mais sobre o rumor, descobrimos que o Caminho Ascendente estava no lugar por nós mais temido: a Cidade.
  Mas todas as operárias gostariam de virar lenda chegando ao Caminho Ascendente de Flores.
  Partimos. Todas as operárias decidiram ir em grupo.
  Era quente. Difícil voar. Caótico. Complicado. Poluído. Foram morrendo, uma a uma. E eu, mesmo quase não mais conseguindo controlar as minhas asas, continuava a voar.
  Então vi.
  Uma infinidade imensa de botões de rosa, que subia até o infinito.
  Ao olhar para os lados, percebi que era a única abelha que sobrevivera, e nem era tão abelha assim. Talvez fosse abelhudo quando humano, mas isso não vem ao caso; o pensamento já se esvaíra. Não conseguia pensar em absolutamente mais nada. Era como a sensação com o hibisco milhões de vezes aumentada. Cada unidade desse milhão era uma flor. Subi. Coletei o pólen de uma e recuperei as energias. Subi mais. As asas ajudavam. Subi mais alto do que um arranha céus. Então vi que minhas asas não me respondiam mais.
  Eu não conseguia voar mais.
  Então caí como abelha toda a quilometragem que havia subido, que parecia agora ainda maior.
  O ar cortava e doía. Arrancou minhas asas. Me queimou.
  O chão me abraçou.
  Ao morrer como abelha, renasci humano.
  Meu corpo infantil continuava o mesmo.
  Minhas pequenas mãos com os dedos roídos, meus joelhos ralados, meus braços magricelas, meus pés descalços, meu calção e minha regata listrada, tudo por algum motivo enlameado. Minha tia saiu da cozinha com seu rolo gesticulando para que eu voltasse, o bolo de cenoura que eu tanto gostava estava pronto. Tia Nastácia não era tia de fato, mas cozinhava tão bem que eu a chamava assim. Vovó Benta estava lá dentro e minha prima caipira em algum lugar perto daquele riacho brincando com sua ridícula boneca de pano recheada de marcela.
  Agradeci pela chance de ter sido abelha. E fui andando para comer o bolo de cenoura, que nunca se compararia ao pólen. Ao olhar para trás vi a imensa roseira que vovó cuidava com tanto esmero e sorri. Eu tinha certeza que agora era uma lenda entre as abelhas.

(...)

sábado, 13 de julho de 2013

Túmulo Subaquático


De cara com a morte, rio e penso na ironia de tudo aquilo; o tal Narciso, quem me emprestou o nome, também morreu. Ficou de cara com a morte, no caso do conto mitológico, a cara da morte sento a própria cara refletida na lagoa. Morreu também por gostar demais de si mesmo. Como eu.
Parecia improvável que eu seguisse a trilha do nome que me apelidaram. Ele deve ter pensado nisso quando me disse o meu nome. Com certeza. Seu Noé sabia de tudo. Pensei que ele tivesse me apelidado disso para tornar o meu problema óbvio para mim mesmo e eu mesmo tentar consertá-lo, não para lançar-me essa maldição.
Mas agora já estou aqui. A morte, transfigurada nessa onda gigante já está aqui. O que fazer? Rio-me novamente, um riso frouxo, descontrolado, louco, histérico.
E o que ficava da minha existência? Nada.
Das três coisas que, segundo a cultura popular todo homem deve fazer, não fiz nada. Não tive filhos, não escrevi um livro, e o que escrevi ninguém jamais lerá, visto que meus únicos escritos estão no velho notebook, que, se já não pifou, logo será engolido pelo mar.
Rememoro os momentos que vivi. Os amigos e, posteriormente, paixões que tive. Todos pareciam tão eternos...
Retiro o último cigarro do bolso e mesmo sob essa tempestade, tento acendê-lo, quase inconscientemente. Depois tenho a mesma crise de gargalhadas histéricas.
Minha mente divaga e eu penso que devo estar parecendo um velho pirata, exceto, talvez, pela parte que o rum na mão do pirata é cachaça na minha e o barco pirata é barquinho a vela vagabundo alugado no porto tosco com um velho que realmente parecia um pirata.
Delírio ou verdade, vejo uma luz. Um holofote apontado diretamente para minha cara. Que ótimo – penso, sarcasticamente – a salvação.
Fato é que eu não quero ser salvo. Não vivi nada que valesse a pena ser lembrado. Felizmente, a onda já está grande o suficiente para ser perigosa a aproximação do helicóptero.
-Que se quebre sobre mim, que acabe logo com minha infame existência, ó onda. – digo.
Ergo um brinde, um último ato descompensado.
-VENHA! – grito. A onda dá a impressão de estar parada, escrotizando ainda mais a minha existência, logo no final dela – NÃO ME OUVIU? VENHA DE UMA VEZ! – berro.
E ela vem. Com força. Ávida. Cruel.
Descendo pro meu túmulo molhado e solitário, não abro mão de pensar: “Acho que viver valeu. De alguma forma, acho que valeu a pena”.
E fecho meus olhos para nunca mais.