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domingo, 23 de março de 2014

Tegredol

Monumento ao Trabalhador - Tomie Othake
  Do banco da imensa praça, Dona Gantina observava as pessoas. Não entendia direito aquela coisa de cada um andar sozinho, muitas vezes cabisbaixo, falando com um fio descendo do ouvido. 
  Dona Gantina não sabia nada sobre política além do que era comentado pelas amigas do tricô. Não sabia nada sobre tecnologia, além de que o botão verde do celular servia pra atender e o vermelho pra desligar.Nada sobre medicina além do que aprendera durante a vida com os costumes populares e com a propaganda de rádio, vinte anos atrás, que repetia que Tegredol era remédio pra doido. Mas ela não sentia falta de nada disso não.
  Ela tinha a vida que queria. Batalhara a vida toda, desde muito antes de ser chamada de "Dona". Quituteira a vida toda, tinha a pele queimada de forno e as mãos calejadas. Atualmente, ela fazia alguns doces ainda, mas só quando dava na telha. Morava com uma sua amiga, Dona Cândida, companhia desde a mocidade. Quando ela parava pra pensar, vira que sua vida não mudara tanto. O que mudou muito foi a cidade. Cresceu demais. A casa continuava a estar onde sempre esteve, frente à praça. Mas a praça não era a mesma, com aquela coisa que colocaram lá.
  Diziam uns ser arte moderna. Outros diziam ser uma linda expressão do intelecto humano. Alguns ainda falavam que era algo que cada pessoa podia enxergar o que quisesse, pois a "obra" representava a vida de cada pessoa de uma forma diferente.
  Não era. Dona Gantina olhava pra coisa nesse momento e decidiu que não era nada disso. Era só um bocado de ferro curvado. As curvas eram até bonitas, mas ela não via nada além disso.
  Alguém dirá que Dona Gantina é burra, mal instruída, ou nem um pouco imaginativa só por não ver algo na coisa? Ela não se importava. Já vivera muito pra isso. Jogou milho pros pombos, riu daquelas pessoas cabisbaixas, com suas tabas tecnológicas, acabou a colcha de tricô, se levantou e foi rebolando feliz da vida pra casa, fazer doce de anelzinho de mamão.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Lembremo-nos

A suavidade dessa existência
Está borriscada, em nós.
Que guardamos dentro d'agente
a mulher-fuligem, forte,
o homem-pedra, suado,
o menino deixado. À sorte.
a menina deixada. De lado.

Foi um grito grandioso
Carimbado nos grilhões de ouro
Que prendem o governo governante.

Sisal e aipim;
o resumo daquela vida bruta
e simples de suor no rosto.
Pau a pique.
Pau à lenha.
Pau em todos, se convenha.

Antepassados.
Dentro desses prédios existem veias
Onde corre o sangue dos desgraçados.
A venda aqui é viável, ali é viávore.
Vi a árvore que passou
de broto a toco.
Pode colocar
Sal a gosto.