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terça-feira, 27 de maio de 2014

Virtual

Ilustração de Guilherme Fonseca
Arqueada, ela vem seguindo.
Contorcendo-se na própria pele.
Afogando-se nos próprios cabelos.
O cansaço já nem incomoda tanto
e o burburinho não para.

Arqueadas, suas sobrancelhas cuidadas
perguntam a nós "como?"
Cabisbaixa, nossa geração não responde,
contorcendo-se numa lógica furada.

Arqueadas, as nuvens observam
o clima, o ofício e a ofensa.
O dilúvio comportamental pasma
uma sociedade estável e doente.

Arqueado, o corpo dela permanece,
pausado, sem conexão.
Agora tudo é simples.
Agora não há um só vagão.


domingo, 25 de maio de 2014

Olho Preto

Tudo parece nublado.
E o sopro é só desabafo.
Ferida que reabre imponentemente.


Mixagem de covardia, medo e destino.
Paciência que não há.
Desestabiliza no voo as penas
de pássaro horrendo.

Versos que serão esquecidos se escrevem pra lembrar
da luta que só há de ser vencida
quando a túnica do orgulho se rasgar.
E relembram distopicamente
que as coisas acontecem por um motivo.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

O Pipoqueiro

  Um dia, Chico relaxava ao lado do painel que era seu ganha-pão, cheio de brincos, colares, pulseiras e anéis. Era uma tarde ensolarada de uma praça qualquer. Ele observava os transeuntes apressados e agradecia por não fazer mais parte daquilo. Foi quando o diálogo de um grupo de adolescentes no banco ao lado lhe chamou atenção:
  -Me pergunto - dizia um dos adolescentes - se os vendedores das lojas de móveis lembram-se de muitos fregueses. - os outros riram, não entendendo a profundidade da indagação do primeiro. Ele continuou - É sério! Imaginem um casal jovem comprando a mobília de sua casa, até então vazia. É a realização de um sonho! O que estes móveis representarão para eles! Neles, eles construirão um lar, edificarão uma família! Quantas e quantas vezes vão se sentar àquela mesa que estão comprando agora, quantas vezes se jogarão naquele sofá, cansados, e tirarão os sapatos? Quantas vezes vão arrumar as roupas dentro daquele guarda-roupas?
  -Quantas vezes transarão naquela cama?
  -Ah, cale a boca.
  -Isso também! Mas entenderam o meu ponto de vista? Será que o vendedor tem noção de que o  que ele vende ali é o lar que vai acompanhar o cotidiano daquele casal por anos? Será que esse vendedor se lembra dos olhares e dos sorrisos dos seus clientes?
  Um senhor idoso ia passando por ali e ouviu estas últimas palavras. Voltou à turma e pediu licença para sentar-se com eles por alguns instantes:
  -Perdoem minha intromissão, meus jovens, e não me julguem sem lucidez. Sou velho e sem muito horizonte na minha frente, ao contrário de vocês. Não pude deixar de ouvir o comentário desse curioso e perspicaz amigo de vocês. Estava falando sobre qual vendedor, meu rapaz?
  -Sobre o de móveis.
  -Do de móveis não sei lhe falar. Só digo-lhes que o único vendedor que se lembra dos seus clientes é o que faz o que faz por amor. Fui vendedor de balas, pipocas e algodões-doces. Pode parecer exagero, mas lembro-me do sorriso de cada criança e do abraço de cada casal que comprou algo na minha mão. Não posso dizer que lembro-me com detalhes de todos, pois foram 20 anos, mas guardo-os todos aqui no meu coração. Talvez pela sincera felicidade e satisfação no rosto de cada um. Vi meninos e meninas crescerem e voltarem a mim com as pessoas que amaram. O vendedor de móveis que ama vender móveis talvez se lembre do sorriso de alguns clientes e os guarde no coração. Quando atingimos uma meta, seja comprar uma bala, seja comprar a mobília, nosso sorriso é tão sincero e inocente quanto o de uma criança. É a beleza de ser humano.Quando se vive por coisas pequenas, quando se sobe um pequeno degrau de cada vez. Agora, tenho que ir que Glória me espera. Até mais!
  O velho se levantou e deixou os adolescentes e Chico silenciosos a refletir. Levantou-se da vida deles para nunca mais aparecer, e aí ficou a beleza e o mistério. Quem era esse velho? O que vivera? Quantas pessoas ajudara, com quantas brigara? A vida de Chico estava cheia de encontros assim. Como duas formigas que andam, se cumprimentam e seguem seu caminho, apesar de pertencerem ao mesmo formigueiro, que é ser humano, com todas as suas semelhanças e unicidades.
  Como que para lembrar Chico Samba que ele tinha um certo compromisso com a vida que escolhera, uma moça de saia estava parada defronte o painel e perguntou:
  -Quanto é este colar?

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Tricotando

  -Já foi a Pasárgada, mulher?
  -Jamais, nem quero ir. Não acredito em poesia, não acredito em nada. Só acredito que são todos sonhadores. Quando se trata de futuro, ninguém sabe esperar muita coisa e, quando um sabe esperar, espera a coisa errada e quebra a cara, é terrível. Foi nesse mundo corrupto e inconveniente mesmo que minha filha nasceu e eu não consigo acreditar que isso seja bom. Não foi em Pasárgada, não foi em qualquer outra Terra. Já estava a mercê das bombas assim que respirou pela primeira vez. Não acredito que haja vida em outro planeta e isso é triste, pois a gente está destruindo o único que há. 
  -Eu já acredito que haja.
  -E isso cancela o nosso erro?
  -Talvez acabemos conosco. Isso é um presente pro resto do universo.
  -Ontem foi Marta, hoje é Camila, amanhã talvez seja Otávia. Não tem vergonha, mulher? De mudar de nome e de personalidade assim? Eu mesma não mudo, não; sou simplesmente eu. 
  -Seu discurso parece profundo, sabia? pra quem não te conhece bem. Parece um discurso profundo e crítico, talvez mesmo inteligente. Não entendeu até hoje que mudar de nome, pra mim, é vida? É necessário não ser conhecida. É necessário conhecer muitas facetas de mim mesma. Fico feliz em ser assim. Chama-me de Mulher, estarei satisfeita.
  -Eu, prefiro ser eu.
  -E tem muita dúvida de quem é, ainda assim.
  -Mas me conheço melhor que você, que muda de nome. Eu convivo comigo mesma há muito mais tempo do que você já conviveu com qualquer uma de suas facetas. É terrível a humanidade porque tem muitas perguntas. Tendo muitas perguntas, busca sempre por respostas e não se aquieta jamais. Nós, velhas, já nos cansamos de perguntar e agora respondemos a várias perguntas dos outros jovens.
  -É que perto da morte a gente fica mais sábia.
  -É metafísica a morte.
  -É.