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sábado, 14 de junho de 2014

Patchouli

  Da janela da sua quitinete, com o copo de suco pra curar ressaca na mão, observando os barcos indo e vindo na Veneza que ele tanto amava, e acompanhando um belo por do sol rosado, Gular entendeu o verdadeiro sentido do tal jargão "Só se dá valor depois que se perde". O álcool tinha saído do corpo durante o sono e deixara sua cabeça explodindo de uma pulsante dor. Os fragmentos de memória não se encaixavam de forma alguma. Não achava que bebera tanto, mas as loucuras de ontem arrombaram sua porta e se sentaram no sofá inconvenientemente, como um vizinho que acha que é seu amigo e ficaram encarando ele com olhos julgadores.
  Gular acredita na capacidade que as coisas têm de desandar. Acredita em energias, boas e ruins, que podem influenciar as pessoas. Acredita que a merda que as pessoas influenciadas por energias negativas e por álcool têm de fazer não tem limites.
  Tirou os olhos dos barcos e do céu e se voltou pra escrivaninha, onde os lápis e cadernos estavam jogados junto com bitucas de cigarro e o incensário. Decidiu escrever um pouco, apesar de que o último texto que produzira fora a história de Pepe, o caracol. Achou um incenso jogado no chão, colocou-o no incensário e o acendeu, deixando o aroma agradável do Patchouli se espalhar aos poucos no ar. Ao escrever duas palavras, tudo o que vivera até ali naquele capítulo de sua vida voltou à tona com uma rapidez brutal e foi tudo pro papel.
  Percebeu naquele momento que a Torre de Pisa poderia ter caído, a Europa dizimada por uma bomba nuclear, a Lua nunca mais aparecer e isso não teria muito significado nada pra ele.
  Há algumas semanas, conhecera um moço. De tudo que era desproposital, nasceu algo. Gostou muito dele. E foi recíproco. Isso significou algo pra ele: significou a fraqueza óbvia de Gular em tentar controlar os seus sentimentos. Foi o fato de que Gular estava novamente caindo em amor, coisa que ele prometera não fazer tão fácil. Mas o jeito, o cheiro, o gosto, o sorriso, a estranheza e o mistério que emanavam do moço eram tão únicos e belos que foi meio involuntário criar alguma expectativa.
  Viu defeitos. Mas viu qualidades que superaram os defeitos.
  O álcool se misturou com açúcar e com a tal da energia negativa que estava rodando no ar e o drink foi amargo. Por motivos poucos e imaginados, Gular levantara o punho contra o moço e as ondulações repercutiram em todos os outros âmbitos de sua vida.
  Olhou pra cima. A fumaça de patchouli continuava a subir e as lágrimas rolaram descarrilhadas.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Alma Velha

  As juntas já doíam. As físicas e as psicológicas. Era tempo demais sentada pra ela não enlouquecer. O problema nem era estar sentada, era o que ela fazia sentada. Desenhar sempre fora para ela um hobbie para se fazer no meio de gente, com conversa, barulho. Do contrário, ela começava a pensar. E ela não conseguia encarar seus pensamentos. No dia inteiro ela tinha feito cinco desenhos bastante trabalhosos, mas não conseguia deixar pensar que estava ociosa, que não estava fazendo nada pra melhorar a vida.
  Era um relacionamento que não tinha muita coisa a ver com ela, aquele que ela tinha. Coisa bígama, polígama, quem sabe, e nem podia fazer nada pra que mudasse; ela amava tanto que preferia passar por cima do orgulho e da forma de pensar. Ela pensava não ser desse século. Era moça jovem com alma de gente que já se encarnara há muito tempo, ou muitas vezes. Anos 20! Século XVIII! Porque não nascera naquela época? Se bem que não, naquela época seria obrigada a usar aquelas roupas quentes. E a curvar-se ante aos homens. Ah, não. Nascera na época certa, sim. Decidiu se levantar um pouco do desenho pra olhar em volta, respirar. Talvez ir num lugar cheio de gente e continuar desenhando.
  Determinada, juntou seus lápis e papéis, indo direto à praça mais próxima. Gostava bastante daquele lugar.
  Era moça tão imaginativa, que amava sair do seu corpo em imaginação e ver as maiores maravilhas mundo afora. Odiava a situação, mas fora presa na terra por um amor mal resolvido, ou bem resolvido, que para ela era mal resolvido. Era tão jovem! Tinha tanto ainda a ver, a ouvir! Mas já vivera tanto... Viajara, fugira, sonhara, tivera o coração despedaçado. O mal dela era recusar-se a aceitar sua juventude.
  Ao sentar-se num dos bancos da praça, com seus óculos, anéis e botas de todo-dia, percebeu uma pequena foto antiga no chão à sua frente. Em sépia, retratava uma menina sorridente, em frente a um matagal, de uniforme escolar à moda antiga. Curiosa, pegou a foto.
  Ao virar atrás, nada viu. Nenhuma, data, nada escrito. Era um pedacinho de alguém que fora perdido. Simplesmente uma lembrança que caíra da bolsa de algum dos apressados transeuntes e agora, por acaso, viera parar com ela. Sentiu-se feliz. Sentiu saudade da infância daquela menina, mesmo que ela nem soubesse quem a menina era. Sentiu falta de algo que nunca tivera, e não soube explicar o porquê. Pensou que talvez fosse sua alma de velha que se conectou com a foto.
  Instigda, começou a divagar sobre quem seria a menina. Quem teria perdido a foto? Um primo dela? O seu filho? Ela própria? Será que essa pessoa sentia falta da foto? Aquela roupinha, aquele sorriso. O que essa foto registrava? Um primeiro dia de aula, um uniforme novo, um penteado diferente, talvez? E aquele lugar? Sua casa, sua escola, um calçamento qualquer?
  A desenhista, imediatamente esboçou no papel a foto, em tamanho bastante ampliado e pôs-se logo a trabalhar nos detalhamentos. Não conseguia deixar de pensar na menininha da foto. Estaria ela ainda viva? Será que ela sofrera de amor também, como sofria a moça?
  Um dedo cutucou timidamente a desenhista. Era um jovem barbudo, meio misterioso, de óculos quadrados.
  -O que desenha?
  -Essa foto.
  -Posso me sentar?
  -Claro.
  Sentado ao lado dela, o jovem passou a mão pelos cabelos e perguntou se a foto, por acaso estava no chão.
  -Sim. Bem ali. - e ela apontou - Oh! Era sua? - logo ela se arrependeu de usar o verbo no passado, mas era como se a foto já fosse parte da história dela!
  -Sim. É minha mãe. O primeiro dia de aula dela na escolinha, está usando o uniforme pela primeira vez. É minha única recordação dela. Ela mora do outro lado do mundo e eu gosto muito de olhar pra essa foto quando me bate a saudade. O amor dela sempre me recarrega as forças.
  -Oh, me perdoe! Tome-a de volta! - e estendeu a foto, sinceramente torcendo para que o menino soltasse um heroico não-o-que-é-isso-pode-ficar-com-ela. Mas ele apanhou a foto, abriu a mochila, agradeceu, elogiou o desenho, disse que se ela quisesse, podia terminar e saiu.
  O desenho da foto nunca foi concluído, mas posteriormente, o rascunho foi emoldurado e posto sobre a cama dela. E ela sorriu ao perceber que o amor, mesmo que torto, não a prendia na terra, mas proporcionava uma liberdade imensa pra que ela pudesse voar. A menininha da foto crescera e tivera um filho, que a amava e morava do outro lado do mundo. Ainda alguma esperança havia para ela.