Páginas

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Na Feira

  Molar queria muito, muito, muito viajar nas costas de uma borboleta.
  As criaturas rondavam a campina. E a música animada produzida pelas Pedras se infiltrava em cada ser.
  Cada uma era mais bonita que a outra e cada uma era bonita à sua forma. Mesmo os cascudos sirilões ou os craquelados peixes-fora-d'água com seus aquários na cabeça eram bonitos. E rodavam ao redor deles borboletas de todas as cores e tamanhos que poderiam existir. Inclusive, a Borboleta Mãe, que sobrevoava tudo aquilo com sua envergadura de três metros e com as asas mais detalhadas que qualquer outro ser. Os seres humanos se dividiam entre adeptos da magia e leigos, que tinham ido até lá apenas pra checar os produtos que existiam. Pequenos preás com suas roupinhas de algodão verde e rosa, de modelo rebuscado, cheias de dobras e redobras corriam sob os pés de todos, apressados em resolver suas questões. De uma carruagem amarelo canário desceu a tão temida máfia dos pinguins, sérios, altivos e engravatados. Os simpáticos bus, cuja estrutura física não passava de bolas flutuantes de pelo multicor, esvoaçavam por todo o canto e um deles até entrou na garganta do mais idoso dos sacis, que engasgou e morreu, virando pó levíssimo e vermelho, que demorou dois dias pra se dispersar. E, no meio de tudo aquilo, a pequena Molar, segurando na mão sua boneca de trapo com os olhos de botões desiguais. 
  Ela subiu numa árvore e começou a observar as atividades. A Dama de Sete Metros se agachava nesse exato momento. Pegou uma grande rede de caçar borboletas e começou a rir e correr, querendo pegar na rede a Borboleta Mãe, fazendo o chão tremer e a barraca de uma tamanduá cair. Cinquenta crianças de todos os tipos se encontravam sentadas, escutando as histórias contadas pelo Professor Tatu, o ser mais falante da feira.
  Molar sorriu e teve certeza que ali era seu lugar. Desde que seguira o bu aparecera para ela, brilhando e dançando no seu quarto abafado do orfanato, pela abissal floresta de grama, ela descobrira o mundo e escalara até a cabeça de um gigante. E A Dama estava quase pegando a gigante borboleta.
  Estava feliz. E nada ia tirar isso dela. 
  A Dama de Sete Metros finalmente consegui pegar a Borboleta Mãe, que se transformou em mil borboletas coloridas que vieram levantar Molar da árvore levá-la para mais um passeio maravilhoso, nas costas de mil borboletas, ao invés de uma só.

(...)

domingo, 12 de outubro de 2014

Negações


  Grude. Um grude denso. Puxento, melado, esquálido, nojento, enfim. Era tudo o que eu via à minha frente. E ao redor de mim. E dentro de mim. De repente eu me tornei aquilo. Nojo de mim.
  E agora não havia um movimento que eu fizesse que não deixasse gotículas por toda a área, sujando ainda mais aquele ambiente hostil. Depois de um tempo, percebi que estava respirando a mim mesmo. Não aconselho ninguém a respirar a si mesmo. No mínimo, dói.
  Fui andando. Deixei pegadas meladas por todo o lugar, que ia só diminuindo. Num acesso de plena frustração e falta de orgulho, chorei. Chorei grude. E tive nojo do meu choro. E o mundo também. E as pessoas me olharam admiradas com a capacidade que tive de me deturpar.
  Segui. Mas segui mal, meu olho embaçado. E chorava grude a todo momento.

(...)