Páginas

sábado, 27 de dezembro de 2014

Vívido


Cara Tilde,
Francamente. O que aconteceu com esses azuis nesse Natal? Essas luzes tão fortes e tão azuis até me atrapalharam de sentir o clima natalino esse ano. Quem foi que disse que cor de Natal é azul? O Natal é vermelho! Aconchegante, quente. Ou dourado, glamoroso, rico, brilhante. Até pra gente que é pobre, faz a gente se sentir rico. Quem sabe a gente abra uma exceção pras luzes multicor, que são, a seu modo, charmosinhas.
Mas azul-boate? De forma alguma, nunca foi. E essa droga de cidade está toda decorada com essas luzes escrotas.
Essas ruas confusas... Muita idênticas! Muita casa igual! Será que se esqueceram de tentar personalizar as coisas? Acho que ninguém tem tempo pra isso nesses dias. Essas luzes desnecessárias. Esse verão quente... Essa obsolescência programada que mata qualquer coitado que queira se manter atualizado. A coitada da Cotinha, da loja, vive juntando dinheiro pra comprar esses celulares novos. Bobagem dela, tem mais coisa na vida. Crueldade usarem o nascimento de Jesus pra aumentarem as vendas. Se bem que tem o décimo terceiro, se não aumentassem as vendas, não iam conseguir pagar a gente. De onde vem todo esse dinheiro que esse povo arruma no fim do ano? Viagem, Natal, virada de ano, salário, imposto. Eu que não sei, não tenho isso. Devo o salário do mês que vem...! Olha, sinceramente, estou mesmo é cansada. Com tanta coisa pra fazer nem vi o fim de ano chegando, logo eu, que sempre fui inteiramente clima natalino, a vida toda. O que me pesa nem é isso, é a frustração, sabe.
Digo, o que fiz nesse ano? Passou e nem sequer percebi! Mudei quem sou? Não. Comecei alguma faculdade, como disse que começaria? Também não. Nem estudar pra concurso não estudei. Fiz o meu Ensino Médio muito bem, numa escola boa. Saí pra casar e quebrei a cara. O que me salva é a leitura. Estou é até hoje presa naquela porcaria de loja, empregada escrava de ricaços que nem sabem que eu existo. Eles sim! Eles que devem ter um Natal magnífico, com direito a perus assados e aquelas frutas charmosas do oriente... Macadâmias, uvas passas, sei-lá-zinhas. É isso mesmo, não é?
Ainda tive, nesse fim de ano, a tal Complicação. Os dias que passei internada foram desgastantes e horríveis...!
Você se lembra do Natal que a gente distribuiu sopa para os moradores de rua? Aposto que esses ricaços não sabem o que é isso. Foi bom. Parece que, quanto mais simples, mais verdadeiro.
O que aconteceu, hein? Bom, sei que, nesse momento, acabando de escrever esse email pra você, eu vou me arrumar e arrumar Toninho e sair pra passar Natal com Gustavo e seus parentes. Ao menos tem Gustavo na minha vida. É um bom companheiro. Faz tudo pra agradar a gente e eu também faço pra agradar ele. E é até bonito, acho que demais pra mim. Mas deu na telha dele noivar com uma mulher como eu, só resta aceitar. Só vou ficar esperta, pois não sofro mais como sofri com Wanderlei. Dona Vitória, mãe dele, se tornou também a minha mãe e é muito boa pra mim.
Bruna, da loja, diz que eu sou recatada demais, fria demais, que minha boceta deve ser congelada. Disse que eu me tratasse, cuidasse do cabelo, tirasse essas saias jeans horríveis, que nem sou religiosa e coisa e tal. Que eu devo até ficar bonita se me arrumar. Disse que eu devo ter feito macumba ou passado café na calcinha pra amarrar Gustavo. E que desse graças a Deus por ter segurado ele “até agora”. “Até agora”! que ordinária. Fica é com inveja. E não tiro a saia jeans, eu gosto!
Toninho se curou da caxumba. Está um menino forte e esperto. Fez sete anos. Graças a Deus, ele entende a dificuldade da mãe e não dá muito trabalho. Se dá super bem com Gustavo e é a única pessoa que ainda me faz sentir o clima natalino. Acho que ele vai amar o tratorzinho que comprei pra ele.
Sinto sua falta. Tenho certeza que por aí está tudo bem. Conforta-me saber que, assim que eu clicar Enviar, esse email vai chegar a sua caixa de entrada. Inquieta-me saber, que você nunca vai ler. Já se foram dois anos, querida Tilde, e eu ainda não me acostumei com a ideia de que você acabou debaixo de um ônibus... Nunca vou me acostumar. Não devia ter ido tão cedo...!
Mas a vida segue. Um dia melhora, se não piorar.


Atenciosamente, C. L.
(...)