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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Quando fomos, já nem sabíamos quem éramos

Claude Monet
Aparentasse ou não, sentia-se consumido de estranha indignação.
Quando pôs-se a olhar, todo o fato lhe doeu.
E se consumiu de merecida indignação.
Que lhe bastasse o sorriso nos lábios de uma criança!
Mas não: ousava surgir num novo âmbito da descoberta pessoal.
Que, quando quis se difratar em vários, sendo ainda o mesmo,
foi avisado do perigo de ser tudo o que quisesse ser.
Aí se consumiu de estridente indignação.
E suas palavras se fundiram em outras tantas...!
Que quando se difratou, ele não pensou.
Mas, no sim ou no não, seria vários.
e não sabia do perigo de não voltar a ser quem era antes.

Aparentasse ou não, ele lutava com e contra indignação.
Subindo mais e mais níveis.
Que, na verdade, nem mesmo importava se
aparentasse ou não.
E subindo, foi pensando.
E, no topo, nada mais havia a desconstruir.
E era só horizonte à sua frente.
E na subida, se cansou. Suou. 
E suas lágrimas rolaram desalmadas.

Aparentasse ou não, agora era pó.
Já consumido de obsoleta indignação.
E quando revirava e revirava na leve cama do ar, 
viu que sua intenção nunca fora muito metódica.
E que sua vida tinha ficado no meio de tudo, 
difratada como luz.
E se consumiu.
Da mais sublime indignação.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Cena de Paz

  Ar. Puro. Vento fresco. Os únicos sons audíveis eram o crepitar do fogo e o rumorejar da água. E sons noturnos que silenciavam as palavras. A montanha fazendo uma exuberante margem no horizonte. Por cima de tudo a gloriosa lua.
  A postura dele não era de quem estava rancoroso, apesar da recente briga. Não era de êxtase, apesar da recente reconciliação. Como haveria de ser? Naquele lugar, não havia como sentir nada por muito tempo a não ser amor. Amor pelo mundo. Pelo céu. Pela lua. Pela terra, pelo mato. E um pelo outro também, claro. Contemplação. Ali, naquela lagoa, o ambiente era, pura e simplesmente, propício para amar. O amor plácido e calmo de quando tudo flui de verdade. E o contemplei. Parado, contemplando a imensidão à sua frente. O vento lambia-lhe suavemente os cabelos e a bermuda. Suas mãos paradas junto ao corpo não demonstravam a habitual ansiedade.
  Conexão, essa seria a palavra. Conexão com o mundo, com algo mais antigo e maior que nós, humanos. Conexão com tudo o que era óbvio e, ao mesmo tempo misterioso. Há quanto tempo não sentia isso? No trânsito caótico, na lida repetitiva, no cinza da minha cidade não havia a menor possibilidade de qualquer pausa. Era cama, despertador, escova de dentes, carro, rádio, semáforo, semáforo, semáforo, garagem, escrivaninha, papéis, papéis, papéis, carro, semáforo, chuveiro, cama  e tudo novamente. Aqui não. Tudo o que eu sentia era paz. E o convidei a sentir comigo.
  A cumplicidade que tínhamos não era apenas um com o outro. Era com tudo ao nosso redor. Lembrei-me da pedra, uma que havia achado há trinta metros do nosso acampamento. Ela se inclinava até a água e submergia levemente. Um lugar especialíssimo
  Então a maravilhosa ideia me ocorreu. Caminhei até ele e toquei em seu ombro fiz um gesto convidativo com a cabeça. Ele assentiu e sorriu. Naquele momento, não era preciso palavras para nos comunicar. Comecei a andar em direção à água e ele me seguiu. No caminho parei. Peguei uma grande folha redonda de um arbusto. Ele me olhou interrogativamente. Eu paguei sua mão e nos abaixei até o chão.
  -Olhe e veja alguma pedrinha, ou pequeno galho que goste. - disse eu.
  Para exemplificar, eu mesmo o fiz. Peguei uma pedrinha redonda. Ele sorriu e fez o mesmo. Um pedaço de galho.
  Chegando à tal pedra, eu dobrei a folha e coloquei sobre ela os objetos. Ele entendeu a ideia e me sorriu o mais belo sorriso do mundo. Juntos, nos abaixamos e pousamos delicadamente o barco improvisado na água.
  O vento encrespava a superfície da água e esta refletia euforicamente a luz do luar.
  E era aconchegante.
  A lua nos observava, ali abraçados, e senti que ela nos acolheu e nos convidou a fazer parte daquilo tudo. Nos convidou a sentir e ser com ela.
  E aceitamos.
(...)