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terça-feira, 11 de agosto de 2015

A Moça que Tentava Amar o Cotidiano


  Sei. Sei que ontem eu não estava bem disposta, querido. Perdão. É a rotina, a rotina faz dessas coizas comigo, você sabe. Além do mais, eu não aguentava mais ouvir nem sequer o som dos seus dentes arrancando uma mordida daquela maçã. Não gosto de rotina, mas acho que gosto das coizas rotineiras. Da magia de se encontrar às vezes um cacoete no rosto de alguém que me lembre um sorrizo seu. Ou de ver uma plantinha teimoza em nascer e se desenvolver na beirada de um meio-fio qualquer. Ou do cheiro que têm os perfumes baratos das moças que bezuntam o cabelo de creme pra sair de manhã cedo. Juro, por Deus, que gosto dessas coizinhas. Me passa a salada? Obrigada.
  Gosto dessas coizinhas, mas não gosto, ah, isso não, dessas nossas conversas no almoço. Agora mezmo, falando, estou sopitando de vontade de lhe dar um tapa, por estar me escutando tão atentamente. Me lembra aquele trouxa do seu irmão, roubando o remédio da estante do seu pai. Não, não, meu bem, desculpe, desculpe Não mais falarei nele. É comigo mezma que tenho vontade de digladiar, eu, com essa voz de taquara rachada. Perdão.
  Daqui pra frente, querido, prometo que tudo vai mudar. Os olhos meus hoje amanheceram tão brilhozos! Quando te contei, amor, dos olhares que testemunhei naquela praça, os sorrizos e gentilezas. As pessoas todas num ímpeto gloriozo de fazer o mundo um lugar melhor! Parecia que estava uma aura leve e perfumada ali. Os índios chegaram pra vender aquelas todas ervas que eu fui olhar depois. De lá, avistei pessoas reunidas em torno de alguma novidade, do outro lado da praça, quando fui ver eram homens pintados de prateado, trabalhando de estátuas vivas. Uma mãe deu uma moeda e um pequeno menino depositou com cuidado na caixinha prateada do homem prateado, vestido de cangaceiro. E ele fez uma festa quando a estátua fez seus movimentos esdrúxulos...! Foi bom de se ver.
  Não quero mais contar-te do meu dia. Eu já estou suficientemente cheia de mim mesma e da minha companhia. Me recordo do dia em que eu comprei um, e só um, giz de cera vermelho e dezenhei um retrato seu, rabiscadinho. Seu sorrizo naquele dia foi bonito de se guardar e olhando para o dezenho, lembro-me perfeitamente dele, ainda úmido. Se tu eras, aquele momento, homem, bicho, planta, ideia, acontecimento ou dezenho mesmo, só o tempo poderá dizer. Mas fico aqui, refazendo pensamentos densos que esquecerei daqui a alguns instantes e rememorando você.

(...)